sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Origin of Evil



Estou com muita vontade de ver o último filme dos irmãos Coen “No Country For Old Men” que lá vai arrecadando prémios e criticas positivas, ao que parece estamos perante um Coen Vintage da melhor região demarcada, mas outra coisa não seria de esperar da adaptação de um livro de Cormac McCarthy que vai buscar inspiração a um universo de personagens tão próximo do imaginário dos Coen. Eu estou especialmente curioso sobre o modo como Javier Barden recriou aquela personagem que, para mim, representa a mais perfeita encarnação do mal que me foi dado ler na literatura contemporânea: Anton Chigurh. E até agora nem a leitura, ainda a um terço (sempre são novecentas páginas e um peso de livro que só permite ser lido em casa e sim eu já tentei nos transportes públicos) de “As Benevolentes” de Jonathan Littell onde se podem ler as memórias do ex-oficial Nazi Max Aue, conseguiu destronar. Talvez sejam duas representações do mal distintas, que não se intersectam, mas eu penso que é bem mais do que isso. Deve ter a ver com o facto de ainda se conseguir vislumbrar alguma réstia de humanidade em Auber, apesar de todas as atrocidades em que ele tem vindo a participar, é um fragmento ínfimo mas que está lá, enquanto que na personagem criada por McCarthy não há vislumbre de qualquer espécie de humanidade, é um ser humano recortado à medida de um vazio emocional muito perturbante.
Até lá leia-se o livro há pouco traduzido para português.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

A Post Christmas Tale

Hoje só lhe apetecia arrumar carros amarelos, queria fazer um canteiro como aquele que deixara na varanda da sua querida Luísa, há dez anos atrás, antes de ela decidir lançar o seu corpo sobre as rosas, fazendo-se pairar alguns segundos sobre elas para depois se deixar cair no alcatrão a sete metros de altura.
Mas os carros que lhe apareciam eram todos brancos, vermelhos, azuis, verdes, cinza e com eles imaginou outros jardins e canteiros, mas não era esses que queria reproduzir. Lá vinha mais um carro branco e pensou logo em malmequeres, jarros, rosas brancas, mas nem se deu ao trabalho de fazer o gesto mecânico de indicar um lugar vago, auxiliado pela folha de jornal dobrada em quatro.
Ah! Lá vem um carro amarelo – disse para si em voz alta – é agora que vou dar início à construção do meu jardim. Fez o gesto indicando o lugar vago, lugar do seu canteiro de rosas amarelas e para seu espanto o condutor ignorou-o e decidiu arrumar o carro noutro espaço mais à frente. Ficou furioso, deitou a folha de jornal ao chão e dirigindo-se de imediato para onde o carro amarelo havia arrumado. Ao chegar junto à porta do condutor julgou reconhecer a cara por detrás do vidro do carro, calou todos os impropérios que tinha guardado desde a separação da sua folha de jornal, abriu muito os olhos e disse:
- Joana, és tu?
Era a sua filha, tinha a certeza, que nunca mais vira desde a morte da Luísa; tinham passado tantos anos e afinal foi noutro canteiro que reencontrou a flor que julgava perdida.
- Minha filha, não me reconheces, não te lembras de mim?
- O Sr. deve estar enganado.
E com estas palavras selou o diálogo por ele iniciado. Ela tinha agora a mão estendida na qual segurava uma moeda de 50 cêntimos. Ele disse:
- Mas filha, sou eu!
Ela fechou a porta do carro e ao mesmo tempo deixou cair a sua carteira no chão. Ele baixou-se para a ajudar, ambos se ergueram rapidamente, ao mesmo tempo ela já com a carteira na mão. No rosto daquela que julgava ser a sua filha ele vislumbrou uma sombra de reconhecimento seguida pelo marejar súbito dos seus olhos, ela chorava e nessas lágrimas ele leu a resposta que ela não lhe queria ou podia dar. Não disse mais nada, deixou-a ir e foi imaginar outros jardins, não tão perfeitos e belos como aquele que ainda agora tinha perdido novamente. Nesse dia e a partir daquele momento todos os carros lhe pareciam flores mortas.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Playing on my iPod 1


Soulwax – Most Of The Remixes que me põe a dançar ao som dos Klaxons, dos The Gossip, LCD soundsystem, dos Gorillaz e Justice. Claro que também lá estão a Kylie Minogue, o Robbie Williams e até os Muse a mistura é estranha e faz-me ouvir coisas que eu normalmente não ouviria mas deve resultar porque está em looping a soar nos meus ouvidos.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Lisbon as Manchester in the 80's


A chuva regressou a este estranho Inverno lisboeta e eu sinto-me em Manchester nos anos oitenta e com aquilo que devia ser um walkman, mas que hoje em dia é um iPod, ouço a banda sonora perfeita para acompanhar esta intempérie. E passo pelos Cemetry Gates na companhia de Wilde, Keats e Yeats, sendo depois forçado a escolher entre eles; partilho uma fogueira com a Joan Of Arc porque a Big Mouth Strikes Again a minha ou a dela, tanto faz. Meto-me no carro com o meu futuro amor, que nunca o será, e o desejo secreto de ambos morrermos por debaixo de um Double decker, não sem antes hesitar sobre se lhe darei a mão ao passarmos por um zona mais escura da cidade, e ao fundo There is a Light That Never Goes Out apesar de Never Had No One Ever e I Know It’s Over, porque sinto a terra cair sobre o meu corpo, enterrando algo que nem sequer teve tempo de começar. “It’s so easy to laugh, it’s so easy to hate, it takes strength to be gentle and kind”.
The Queen is Dead a questão é que Queen será essa?….talvez um Boy With a Thorn In His Side até porque Some Girls Are Bigger Than Others. Na cerimónia fúnebre um Vicar In A Tutu será o perfeito orador para subir ao púlpito fazendo um sermão que comece por Frankly Mr. Shankly e que nos fale, recorrendo à má poesia, sobre o que terá sido viver na Inglaterra sob o apertado punho da Dama de Ferro, com certeza cenário não muito diferente do que é viver hoje em Portugal sob as apertadas e monocórdicas palavras que nascem das cinzentas cordas vocais de um robótico primeiro-ministro com nome de filosofo suicida..."Sweetness, sweetness I was only joking when I said I'd like to smash every tooth in your head"

Feeling Numb?



Mark Kilner: Numbskull, 2007. One plastic skull encrusted with 630 'extra power' paracetamol tablets. No diamonds.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Things Gone and Things Still Here


Existem os mestres óbvios do conto que nos saltam à memória assim que pensamos nessa forma de expressão literária e geralmente é possível encontrar consenso à volta de autores como Raymond Carver ou Tchekov mas continuamos a negligenciar um dos grandes mestres do conto do século XX: Paul Bowles. Não sei se terá sido pela sua formação musical, foi um músico de grande talento, que encontramos na linguagem deste autor americano uma precisão que não encontra paralelo em mais nenhum escritor seu contemporâneo. Por essa razão, ou qualquer outra, o certo é que cada conto seu é um pequeno tesouro literário. Fazendo uso de uma linguagem acessível a todos a sua escrita vai direita ao mecanismo exacto da palavra, sem nunca a deixar perder a magia do poder evocativo que associamos aos milenares contadores de estórias. Estou a reler as suas Collected Stories que abrangem um período entre 1939 e 1976 e, a cada página que leio, aumenta em mim a certeza de que estamos perante uma literatura que nunca há-de ter que temer a passagem do tempo, porque possui uma qualidade inerente às obras que são bem mais do que pó que as escreveu.

Modern Love by Carol Ann Duffy

Text

I tend the mobile now
like an injured bird.

We text, text, text
our significant words.

I re-read your first,
your second, your third.

look for your small xx,
feeling absurd.

The codes we send
arrive with a broken chord.

I try to picture your hands,
their image is blurred.

Nothing my thumbs press
will ever be heard.

In Rapture

sábado, 15 de dezembro de 2007

To Hirst or not to Hirst



Sempre fui um pouco céptico em relação à Arte contemporânea, pode-se argumentar que por ignorância, mas esse é o argumento dos fracos de espírito porque a verdadeira arte também deve tocar os "ignorantes". Da nova, agora já menos nova, geração de artistas britânicos que surgiram na década de 90 poucos me impressionaram e de entre eles eu incluía o Damien Hirst até ao dia em que tive o privilégio de ir ver uma exposição dele na galeria White Cube. Percebi então o verdadeiro poder evocativo e misterioso que a Arte possui, percebi pela primeira vez de uma forma inequívoca, e para além das salas de museu, a verdadeira importância dessa forma de expressão. Essa exposição fez-me sentir como os meus antepassados se devem ter sentido ao olhar para as pinturas rupestres nas paredes das cavernas, deslumbramento, medo, alegria, êxtase, percepção quase absoluta do momento em se vive e da nossa perenidade. Não sei o que os outros, que também estavam na exposição, sentiram só sei que aquilo que me foi dado partilhar representou para mim um momento tão único como aquele que para os místicos será a revelação de um ente superior.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Karaoke Father


A ocasião é o natal dos hospitais. A canção é “Quero a Paz”, sim com o artigo que faz toda a diferença. O pároco o Sr. Borga. O momento, obviamente, inesquecível e de “playback”. A sugestão: mandem-no para o Iraque, ou faixa de Gaza que é terra mais santa, pois é lá que realmente precisam de paz e com tanto querer há-de haver, com toda a certeza, algum poder. Seria o chamado Karaoke Power.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

And now for the real thing...

Aqui

http://www.guardian.co.uk/news/video/2007/dec/13/dog

Palavras para quê? It's a dog's life!

White (House) Christmas: An alternative take!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Brief Encounter

Ao olhar na direcção da origem da chuva reparou que o céu cinzento-escuro estava nesse momento a ser quebrado por um bando de pássaros. Deixou o olhar pousar sobre o corpo de uma dessas aves e quando o perdeu de vista continuou a fixar as nuvens que pareciam renascer de um tempo anterior à sua existência. Reparou que se tinha esquecido do telemóvel no escritório, mas não lhe apeteceu voltar lá, se alguém lhe ligasse saberia o que queriam amanhã de manhã. Precisava dessa liberdade que ao mesmo tempo acentuava a sua solidão. Mas talvez a solidão só existisse porque marcada pela sua procura de mensagens e chamadas no visor do telemóvel. Uma espécie de solidão mais triste, porque dependente dos outros, ele sempre havia preferido a outra solidão de que já não se lembrava, aquela que dependia só dele. As ruas estavam quase desertas ou cheias de transeuntes apressados, de certeza quase todos a caminho de casa. Como eram poucas as pessoas com quem se cruzava decidiu prestar-lhes mais atenção, fixá-las para as poder esquecer melhor. Não reconheceu ninguém, eram só estranhos uns de chapéu aberto, outros enfrentando a chuva a descoberto. Nenhuma dessas pessoas lhe devolveu o olhar. Ele também devia ter trazido o chapéu-de-chuva, mas pareceu-lhe que o tempo ia melhorar, enganou-se. A vida era feita destas pequenas decisões, e quase todas elas erradas.
Só reparou nela algum tempo depois de estar a fixá-la há algum tempo, notou primeiro o incómodo desse olhar, incómodo do qual ela não se apercebeu porque nem reparou que estava a ser observada. A sensação de desconforto era só dele e não tinha origem na descoberta de estar a observar assim alguém de um modo tão intenso, tinha origem no reconhecimento daquela mulher. Ele sabia quem ela era, talvez ela já não se lembrasse de quem ele era, ou para ser mais preciso de quem tinha sido. Pensou no absurdo, na possibilidade de se aproximar dela, de lhe falar. Nesse momento sentiu que era ele quem estava agora a ser observado. Ela já tinha desaparecido do seu campo de visão e no seu lugar estava agora um homem que o olhava directamente nos olhos, ele não desviou o olhar, retribuiu-o com uma interrogação no rosto. O outro indivíduo deve ter interpretado isso como um sinal reconhecimento da sua parte porque decidiu aproximar-se com um sorriso aberto.
- Como estás? Pensava que não me tinhas reconhecido.
E não reconheci, ainda não sei quem possas ser – pensou ele.
- Já lá vão alguns anos.
E ele já tinha desistido de fazer o tal esforço mental que lhe permitiria saber quem era aquele homem ainda um estranho. Há muito que tinha deixado de se preocupar em aprofundar situações destas. Se não se lembrava, encenava o melhor que podia uma espécie de reconhecimento superficial, deixava o outro conversar, fazer as ligações, falar de um suposto passado em comum e geralmente assim tudo fluía bem até à despedida que nunca era coroada com a marcação de um novo encontro e sempre com um diplomático “muito gosto em rever-te”, “estás na mesma” ou “até breve”. Desta vez foi diferente porque o outro interveniente se apercebeu de que algo estava errado.
- Já percebi que não me estás a reconhecer...
Desarmado por esta interpelação que até à data mais ninguém se havia preocupado em pronunciar, quer se tivesse apercebido ou não dessa realidade, deixou-se afundar num silêncio ainda mais comprometedor.
- Queres que eu te ajude a recordar? Ou talvez seja melhor esquecer que nos reencontrámos?
- Sim talvez seja melhor assim.
- Tudo bem, eu percebo.
Nesse momento a chuva aumentou de intensidade.
- Não queres boleia?
Ele estava a referir-se à possibilidade de ambos se abrigarem sob o mesmo chapéu-de-chuva.
- Não obrigado.
- Claro, também me parece que já não te vais molhar mais.
E ele sorriu, e por momentos esteve quase a reconhecer aquele sorriso. Por associação a ela, àquela estranha mulher que se havia diluído na chuva. E foi talvez induzido por essa espécie de recordação que decidiu, contra a sua vontade, continuar a conversa que o outro havia tentado.
- Realmente não me lembro de quem sejas. Mas para ser sincero acabei de ver uma pessoa exactamente onde tu estavas ainda há pouco, era uma mulher de quem me recordo. Mas ela estranhamente desapareceu e quando voltei a mim, desperto de uma espécie de transe do qual não me tinha apercebido, estavas lá tu no lugar dela.
- Isso não é nada estranho. Quem tu viste foi a minha mulher e foi ela que me disse que te tinha avistado aqui. Ela agora foi ali àquela loja. E eu tomei realmente a posição dela. E estava a observar-te à distância. À espera de um reconhecimento que afinal não veio.
- Lembro-me da tua mulher, sei que a conheço.
- Claro, como me conheces.
- Desculpa mas de ti não me lembro.
- Não te recordas...
- O teu sorriso não me é estranho, mas fez-me lembrar ela e não despertou em mim qualquer recordação sobre quem tu possas ser.
- Eu posso ajudar-te dizendo quem tu foste para ela.
- Eu sei que já a amei.
- Sim foste o amante dela.
- E ela já era casada?
- Sim. Comigo.
Desde que este diálogo teve início os dois homens encontram-se abrigados sob o chapéu-de-chuva e conversam muito perto um do outro.
- Não me lembro de nada. Peço desculpa. Só me lembro de que a amei muito.
- E ainda amas?
- Acho que não.
- Foi ela quem te deixou.
- Disso não me recordo.
- Deixou-te por cobardia, não porque não te amasse também.
- E tu ainda a amas?
- Muito. Ela sacrificou-se por mim. Mas eu não amo mais por isso, houve uma altura em que a até a amei menos por isso.
- Eu já não a amo.
- Como sabes isso se não a tinhas voltado a ver desde que se separaram?
- Tens razão, talvez me esteja a tentar convencer disso.
Ao longe ela aparece e acena na direcção dos dois.
- Queres falar com ela?
- Quero. Mas não o vou fazer.
- Porquê?
- Porque já nada tenho para lhe dizer.
Ela pára de acenar. Os dois homens despendem-se.
O homem fica sozinho à chuva a observar o reencontro do casal. Existe uma breve troca de palavras entre eles e ela olha na direcção do homem sozinho que se encontra à chuva, ainda imóvel. O olhar dela não consegue ser completamente opaco. Atravessa a chuva e pousa na memória partilhada pelos dois ex-amantes. Nesse preciso momento ele recorda-se de tudo, das tardes passadas juntos e recorda-se de pequenas coisas que sustentaram essa memória até há pouco tempo perdida. Reflexos de luz sob o rosto dela. De que o sexo entre eles parecia sempre triste. Mas essa não era a recordação mais forte. Na sua memória despertaram inumeráveis momentos infinitesimais que seriam capazes de preencher anos de vida. Deixou-se estar a ser observado durante mais algum tempo até que começou a sentir o frio da chuva atravessar-lhe o corpo. Sentia-se diluir não pela chuva mas pelo olhar penetrante e agora doloroso daquela mulher. Percebeu que ela ainda o amava e no entanto ele já não sentia nada por ela. O amor dela doía-lhe e deixava-o humedecido mais do que aquela chuva que parecia não querer parar. O casal já se tinha ido embora mas ele tinha ficado fixo naquele local, preso às memórias partilhadas com aquela mulher. Um forte arrepio de frio fe-lo avançar e sair daquela posição estática. Queria perceber porque é que tinha deixado de amar aquela mulher, a razão mais óbvia teria sido a rejeição, mas essa era uma razão fraca, ninguém deixa de amar outra pessoa só porque é rejeitado.
Foi para casa, despiu-se e tomou um duche de água bem quente. Sempre na companhia daquela mulher. Mesmo depois disso o frio não lhe passava, talvez me tenha constipado, pensou. Mas sabia que era um frio diferente. Sentado na cadeira de leitura com um livro aberto no colo continuava a sentir o corpo gelado e aos poucos foi-lhe dado perceber porquê. Percebeu que há muito ninguém o amava, que ninguém o amava como aquela mulher o tinha feito. Naquele dia à chuva tinha perdido esse amor que nem sabia ainda possuir. E no lugar desse amor tinha ficado um poço negro cuja profundidade ele sabia não estar à altura de medir. Sentia apenas as paredes frias desse poço a roçarem na pele e a penetrarem lentamente no seu corpo.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Crime Without Punishment


O último filme de Gus van Sant “Paranoid Park” transporta-nos aos temas recorrentes da sua cinematografia, a qual ultimamente se tem vindo a fixar no universo da adolescência, quer seja através do retrato possível do grotesco com “Elephant” ou deste último filme mais ao jeito de um drama psicológico do século XXI, numa espécie de homenagem a Dostoievski. Até o filme anterior “Last Days”, biografia de Kurt Cobain, se pode integrar facilmente nesta visão claustrofóbica e misteriosa que é muitas vezes associada às dores do crescimento inerentes ao início da idade adulta.
No cinema contemporâneo poucos cineastas se aproximam tanto da realidade que é ser-se adolescente nos dias de hoje e isto de um modo subtil, sem recorrer a artifícios de linguagem que poderiam por em causa a veracidade deste retrato, o qual há-de ser sempre imperfeito. O ponto de vista é puro no sentido da personagem, é como se pudéssemos habitar por instantes dentro daquele ser e viver com ele a aventura de aprender a dar os primeiros passos num mundo demasiado complexo e rico em apelos. A adolescência é quase sempre guardiã de terríveis segredos, alguns desses segredos nós percebemos mais tarde que nada possuem de terríveis, mas outros talvez mantenham essa qualidade mesmo na idade adulta. O peso de um crime, ou morte acidental, não se desvanece com a consciência mais apurada sobre aquilo que nos rodeia, há-de possuir sempre a mesma densidade. Depois de nos levar a ouvir a confissão de um adolescente sobre uma culpa difícil de suportar, o filme acaba com um ritual de chamas que parece querer expurgar a memória e purificar o futuro, mas todos os adultos sabem que por muitas fogueiras que se façam o ferro em brasa da adolescência, e das suas recordações, há-de ser sempre mais forte que todas as chamas etéreas que tentam expiar consciências pesadas. Neste caso o crime parece vir sem castigo, no entanto o castigo tem o poder de renascer das cinzas das nossas confissões, mesmo daquelas que são feitas ao vento.
O filme encontra-se repleto de imagens fortes e plenas de carga simbólica, que poderão ser mais ou menos evidentes para os espectadores, no entanto não pode ficar sem referência a homenagem ao mestre Hitchcock através de uma magnífica cena de chuveiro, neste caso na companhia de uma morte violenta mas sem sangue no ralo da banheira, é tudo feito de contrastes de sombra e luz ao som, não das cordas imaginadas por Bernard Herrmann, mas do chilrear dos pássaros que parecem ser criaturas que habitam os azulejos da casa de banho, e cujas vozes já não falam de inocência.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

His Dark Materials


Antes de ser um filme em três partes, já foi um livro também dividido em três (estas analogias cristãs serão freudianas?), mas eu só entrei no mundo de Lyra através de uma peça de teatro dividida em duas partes e cuja apresentação durou seis horas. Foi no National Theatre numa adaptação feita por Nicholas Wright e há-de ficar para sempre como um dos mais poderosos momentos teatrais que vivi.
Os romances fantásticos de Philip Pullman surgem como uma espécie de resposta aos de C.S. Lewis (As Crónicas de Nárnia) que o ano passado estrearam no cinema por volta desta altura, sem gerar controvérsia, claro. Ao que parece os católicos, ou religiosos fundamentalistas americanos, estão muito preocupados com a estreia deste novo filme essencialmente porque é um filme "ateu" que promove o conhecimento e pensamento e mais grave, para alguns, a liberdade desse mesmo pensamento em detrimento do obscurantismo e e o amor canino promovido pelas religiões em geral, e a cristã em particular.
A ver por todas as criancinhas, por aquelas que ainda o são e as outras que não deixaram de ser.