sábado, 18 de janeiro de 2014

As I Enjoyed It


O Arena Ensemble vai estar até ao fim do mês no Teatro São Luiz com a peça de William Shakespeare “Como Queiram” (As You Like It) uma comédia do dramaturgo inglês que contém um dos textos mais citados de todo o drama isabelino:
All the world's a stage, And all the men and women merely players; They have their exits and their entrances, And one man in his time plays many parts, His acts being seven ages (...)
E sim esta é uma daquelas peças que assume na sua estrutura o micro-teatro das nossas vidas, onde o real se transmuta em simbólico ou os sexos se diluem e se permite que invertam papéis, tão ao gosto da moda teatral da época, onde aliás alguns papéis femininos eram representados por homens. Os papéis por vezes são estereotipados, mas só porque a realidade é demasiado complexa para que a deixemos entrar na representação de uma personagem que não sendo nós, se encontra mais próxima da nossa pele do que aquilo que desejaríamos assumir.
Sobre o texto original já se escreveu quase tudo e muito ainda se irá continuar a escrever porque é uma fonte inesgotável de deslumbramento e de humor cuja fórmula não corre o perigo de se esgotar, nem por imitação ou aproximação por parte de escritores presentes ou futuros. Sobre o sopro de vida dado por este conjunto de atores já vale a pena falar porque é um momento que se fixa no tempo e que não se vai repetir nunca mais, mas essa perenidade é também a sua força porque quem está num teatro sabe isso, tanto de um lado como do outro lado da barricada, e é essa emoção que faz do teatro ao vivo um momento intenso a quem ninguém fica indiferente.
A encenação desta peça está a cargo de Beatriz Batarda que dirige os atores de um modo sóbrio, e competente, que poucas vezes nos deixa perceber as linhas invisíveis do seu trabalho, permitindo um evidente grau de liberdade aos atores cuja qualidade do trabalho dramático é constantemente posta à prova e na maioria dos casos superada. Só não o é no caso do Marco Martins que faz do Duque Frederico uma personagem risível e que é responsável por um desnível, espero que assumido, (talvez para tornar ridícula uma personagem que é pouca amada?) muito grande entre ele e os outros atores em palco. Depois temos o Bruno Nogueira que sendo ator está sempre a representar a mesma personagem, seja lá qual for a peça onde entre, mas que apesar de tudo consegue trazer uma perspectiva nova, que desconfio, seria mais pertinente fora de palco. Talvez ainda venha a ser um grande encenador mas ator de textos dramáticos ainda não.  Não deixa de ser interessante observar uma atriz em cena, Leonor Salgueiro, que é uma versão feminina, mas com alguma preocupação dramática, do Bruno Nogueira.
Estes dois/três atores trazem algum desequilíbrio à peça, no entanto tal é amplamente recompensado pelo facto de os outros serem quase todos brilhantes, e por isso convém destacar o trabalho da Carla Maciel, de Luísa Cruz e Sérgio Praia, tríade que só por si justificava uma ida ao teatro São Luiz, isto pela visível paixão, e entrega, com que constroem as suas personagens e também para observar como as fazem vibrar com uma ressonância dramática muito acima da média. No seu suporte encontramos outros atores que, não estando tão alto, são responsáveis por um competente trabalho dramático, que alguns dirão, ser quase tão importante como aquele que permite aos outros alcançarem as nuvens. Nessa escala intermédia encontramos o Romeu Costa e a Sara Carinhas. Há no entanto um ator que me deixa sempre um pouco confuso quando o vejo em palco, o Nuno Lopes sobre quem nunca consigo decidir a propósito da qualidade do seu trabalho, porque flutua demasiado, indo facilmente do excelente ao medíocre, por vezes no tempo que demora uma fala inteira da sua personagem. 
Mais uma vez a cenografia é insípida e neste caso a desculpa da crise não me parece lógica, o problema aqui é mesmo a falta de imaginação. Ripas de madeira ao alto, semiencobertas de panos branco, mais ou menos bem esticados, sobre uma estrutura em andaime formada pelas madeiras, acrescenta muito pouco à leitura da peça e se é para ser moderno, aviso desde já que cheira um bocado a mofo mesmo antes de sair do papel do cenógrafo para se tornar ideia em palco. Pobreza, ou falta de dinheiro, é uma coisa bem diferente de pobreza de espírito ou preguiça criativa.
Outra coisa que enfraquece a peça é colocar alguns atores a tocar instrumentos em palco, os quais ou eles aprenderam a tocar há pouco tempo ou, pior ainda, para os quais não possuem o menor talento. De que serve colocar alguém em palco a tocar meio acordeão ou a tocar guitarra de uma modo flácido e sem convicção. Também não ajuda muito o facto do compositor (Pedro Moreira) estar limitado a um número reduzido de acordes,  culpa da falta de talento musical disponível, e por essa razão algumas canções se parecerem mais com hinos de igreja cantados ao Domingo por escuteiros que levam pouco a sério a sua fé. No entanto devo salvaguardar que a ideia e construção da canção final é de génio e quase que faz esquecer o desastre de todas as outras.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

The Bell


Afinal a Iris Murdoch não é a Dame Judi Dench e podia ficar por aqui, mas não é possível, pois cada vez são mais raras as descobertas de grandes escritores ou porque eles ainda não existem em papel ou porque os que existem, e aparecem nas bancas das livrarias que monopolizam o mercado, valem muito pouco e não passam de ruído literário que nunca será música, apenas uma cacofonia incómoda, irritante e reveladora da mais absoluta falta de talento. Deve haver exceções, mas a regra por enquanto é esta.
Também não é bom quando na nossa memória a primeira imagem que nos surge quando pensamos numa escritora é a da atriz que a representou no cinema, isto aconteceu-me durante anos com a Iris Murdoch, cuja existência eu desconhecia antes do filme que para cúmulo nunca vi, e a qual sempre associei à Judi Dench, numa estranha ordem de associação de ideias, Dame e depois Iris.

Esta ilusão terminou nestes primeiros dias do ano quando decidi começar a ler um livro que comprei em 2ª mão o que, pelas razões expostas anteriormente, só poderia ter ocorrido num alfarrabista, neste caso de Lisboa. O livro é “O Sino” e desde a primeira página nos é dado perceber que estamos perante um enorme talento literário e desde a primeira página fiquei suspenso desta escrita que possui uma respiração própria, profunda e densa, cujo ritmo acompanha de modo perfeito a vida das personagens. Murdoch é exímia em tudo, na descrição dos lugares, na leitura psicológica das personagens, na destreza da escrita e no respeito pelo leitor que assume como um seu igual mas a quem nunca revela o jogo todo. Neste livro, em particular, consegue fazer com que o espaço físico ocupado pelas personagens se imiscua nos seus gestos, sentimentos e atitudes, como um pintor que ao retratar uma paisagem conseguisse, através de um truque visual que ainda não foi inventado,  representar o humano como mais um traço da paisagem mas sem que esse traço fosse uma fronteira, antes pelo contrário, esse traço faz depender o exterior do interior e vice-versa, é um traço que vai permitir que o mundo material que envolve o humano o possua, tornando-o perniciosamente consciente dos seus limites psicológicos e comportamentais. Tu és o espaço onde vives, és a prisão que escolheste, a do teu corpo e do universo material que partilhas com os outros.