sábado, 30 de janeiro de 2016

Capricho


Capricho

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Ela sabia que a honestidade, quando partilhada com estranhos, suava sempre a falso mas isso não a impediu de começar a falar e de por vezes partilhar, com homens que acabara de conhecer, o ridículo dos seus pensamentos mais profundos. Claro que enquanto falava o ia avaliando, tentava imprimir na sua memória características físicas que ela sabia estarem condenadas ao esquecimento; a foda não tinha sido má de todo, para uma primeira vez, as primeiras vezes eram quase sempre difíceis. Agora falava sobre trivialidades com aquele quase estranho e isso para ela era como se estivesse no consultório de um proeminente psicanalista, ao mesmo tempo fazia o esforço possível para o não esquecer e sentia-se ligeiramente excitada com a possibilidade de voltar a fodê-lo a seguir a esta pequena conversa, quase de circunstância, não fosse o peso de alguns assuntos que ela por vezes insistia em debitar. Ela não se atrevia a olhá-lo nos olhos porque sabia que isso seria fatal para a continuação do seu monólogo, inicialmente, quando ainda tinha pouca experiência destas situações fazia um esforço por fazer essa ligação com o outro, depois percebeu que era inútil, o outro ou mostrava enfado ou uma espécie de interesse dissimulado que também era uma forma de enfado, ela sabia que estes desabafos só lhe diziam respeito a ela mas não estava muito preocupada em repetir a situação com o mesmo indivíduo era-lhe indiferente que ele estivesse ou não interessado nas palavras dela. Hoje decidiu que lhe queria falar sobre o seu marido, e dizia-lhe tudo o que havia a dizer sobre ele, ou pelo menos aquilo que ela imaginava saber sobre ele. Nem todos aceitavam assim com tanta naturalidade conversar sobre o marido da mulher com quem haviam fodido, mas através da exploração subtil do voyeurismo dos outros ela conseguia mantê-los interessados. Talvez porque ela, conscientemente, fazia o jogo deles e dava-lhes a esperança remota de poder comparar a foda deles com a do marido. Ela nunca os satisfazia completamente mas também nunca os desapontava, era fácil manter esta linha de compromisso e ajudava-os a mantê-los atentos ao que ela ia dizendo. Isto claro só acontecia quando falava sobre o marido, para os outros temas era mais complicado manter a atenção destes homens. Com as mulheres ela achava mais fácil manter estes monólogos e as fodas eram igualmente boas.
Aquele era o apartamento dele, situado no 8º andar de uma torre de apartamentos de subúrbio, e ela tinha ficado virada de frente para a janela, o vidro cristalino deixava ver uma fração de paisagem citadina, era a hora de almoço de um dia de verão, por isso a intensidade da luz fazia derreter os contornos dos prédios que pareciam querer ascender nos céus, sublimados, e desaparecerem naquela massa de azul celeste. Por segundos deixou o seu olhar perder-se nessa paisagem e quando recuperou consciência  do silêncio que tinha deixado suspenso, para sua surpresa foi interpelada por aquele estranho que lhe perguntou se era feliz. Os prédios depressa readquiriram novamente a sua constituição sólida, a vulgaridade daquela pergunta deixou-a pasmada e ela que sabia muito bem onde isto ia dar decidiu quebrar mais uma regra do jogo, que devia ser sempre só ela a jogar, e olhou-o diretamente nos olhos. Precisava de saber se ele era alguém a quem devia responder sim ou não, se seria um otimista ou um pessimista. Se adivinhasse o conteúdo da resposta que ele desejava ouvir ainda havia esperança de poder acabar com aquele diálogo que ela queria transformar outra vez em monólogo. A máscara que ele usou parecia impenetrável e ela teve que fazer um esforço suplementar para a poder ler, mesmo assim tinha a certeza que se ia enganar por isso socorreu-se da única resposta que a poderia salvar do silêncio, do que tinha deixado interrompido quando parou o olhar nos edifícios derretidos e que agora se tinham tornado tão reais como a tentativa de interação que ele tentava preconizar. Ele levantou-se e aproximou-se dela, ela ignorou esse movimento até ao momento em que ele aproximou o rosto do dela e a beijou suavemente nos lábios engolindo algumas das suas palavras. A ela pareceu-lhe que ele lhe havia roubado não só aquelas últimas palavras como todas as outras que se lhe iam seguir e por isso manteve o silêncio e nesse momento ele aproveitou para lhe fazer a mesma pergunta. És feliz? E só então ela percebeu que não era a reposta que lhe interessava, ele sabia já a resposta, ambos sabiam qual era a resposta, o que lhe interessava era outra coisa e ela ainda não tinha percebido o que era, e nesse momento sentiu-se assaltada por um daqueles momentos de pânico que eram cada vez mais raros nela. O pânico só se manifestou dentro dela. De fora era somente uma mulher que o afastou de si, empurrando-o na direção da janela e pedindo-lhe que a abrisse, acabou por lhe dizer:
- A minha felicidade seria agora tu lançares-te pela janela e eu ficar aqui na cama por de entre os lençóis que ainda guardam o teu cheiro.
Ela fechou ligeiramente os olhos e quando os voltou a abrir ele já lá não estava. Seguiu-se um silêncio musical, daqueles que anunciam o final de um belo quarteto de cordas, e ela respirou fundo entregue à memória do cheiro que ele lhe tinha deixado na cama.